quarta-feira, abril 6

Nunca fale com espíritos do submundo

Madrugada chuvosa. Encharcada, Sarita, enfermeira plantonista da santa casa, se abriga sob uma parada de ônibus. nenhuma alma viva na rua. Até que ela escuta uma voz rouca ao longe:
- Sarita...
Um frio percorre a espinha de Sarita, que arregala os olhos e permanece inerte:
- Sarita...
- Quem chamou?
- Eu... O Zé...
- Mas que Zé?
- Aquele que vai puxar seu pé...
Nesse momento, Sarita sente uma presença, mas não havia ninguém:
- Pelamordedeus. se eu fiz alguma coisa pra alguém do outro mundo, juro que foi sem querer.
- Sarita...
- Ai, meu Deus.
- Você me deixou, Sarita...
- Deixar você? Mas eu nunca tive nenhum homem na vida e...
- Deixa eu terminar a frase, Sarita... Você me deixou na maca... Me deixou morrer...
Sarita se benze:
- Cruz credo! Mas o que você tá dizendo?
- Aquela noite... Eu cheguei ensanguentado no hospital...Sujo... Eu era um mendigo, Sarita... E você me deixou na maca... Mal me tocou...
- Quando isso?
- Há três longos anos...
- Mas faz muito tempo. Entra gente assim no hospital o tempo todo. Você não quer que eu me lembre de você e...
- Sarita, cale a boca...
- Mas eu preciso me defender e...
- Não adianta se defender... Eu vim para te levar...
- Me levar?
- Sim... Levar para o inferno, que é de onde eu vim...
- Do inferno? Aqui é o inferno...É só ver este tempo infernal, esta chuva...Olha, me desculpe, mas, se foi para o outro inferno, boa coisa você não era...
- Fui para lá por sua causa...
- Desculpe, mas eu acho que você está enganado.
- Não, enfermeira Sarita. Não estou...
- Existe alguma maneira de me redimir? Não posso morrer agora que fui promovida a enfermeira-chefe.
- Não existe nada que eu possa fazer. Essa é a sua hora.
- E com a ordem de quem você vai me levar?
- Com a minha própria ordem...
- E o seu superior está informado disso?
- Superior?
- Sim... O chefe do submundo do inferno...
- Ele não precisa saber...
- Como não? Você acha que pode decidir quem vai para o inferno ou não, Zé? Não é assim.
- Não?
- Claro que não. Veja: agora que fui promovida a enfermeira-chefe, nenhuma enfermeira está autorizada a certos procedimentos sem a minha autorização. Você não passa de um enfermeiro no hospital do inferno. Falta muito ainda, vai por mim. Sei como é.
- E como eu consigo?
- Ah, é fácil. Assim que alguns mendigos bebuns surgirem no seu caminho, faça de conta que não os viu.
E essas foram as últimas palavras de Sarita, que não desfrutou um dia sequer sua promissora carreira de enfermeira-chefe da santa casa. Tudo porque falou demais com uma alma vingativa, que vinha das profundezas do inferno.

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